- O velho morreu! - disse Aroldo, entusiasmado.
- Morreu? De quê? - questionou a irmã.
- Os médicos ainda não sabem. Mas, graças a deus, ele morreu!
Há tempos que o velho Moretti vivia sozinho naquele casarão. Não por abandono dos familiares, mas por opção, já que temia ter sua fortuna roubada pelos parentes. Viúvo e sem filhos, era o estereótipo perfeito do tio rico que, supostamente, tinha o patrimônio cobiçado pelos herdeiros. Mal sabia ele que o estereótipo continuava após sua morte.
- Aroldo, temos que chamar logo o advogado, falar com o Carlos... ele deixou testamento? - pergunta a irmã.
- Não sei. Vou ligar agora para o Dr. Moacir para verificar isso.
As mãos de Aroldo tremiam, pois era como se houvesse tirado a sorte grande na loteria. Trágica coincidência, o próprio falecido tinha um ódio mortal de jogos de azar; para ele, as pessoas deveriam merecer o dinheiro, deveriam obtê-lo por seus méritos e, não, por "outros" fatores.
- Que leve seu ódio pro caixão! Que leve sua avareza pro inferno! - gritava Aroldo.
- Aroldo... o Carlos ao telefone. - diz a irmã.
Embora relutante, Aroldo atende ao telefone:
- Diga lá, Carlos. Sim, o ve... titio morreu nesta manhã. Sim, eu sei que é triste, mas não pôde ser feito nada. Os médicos disseram que o quadro era irreversível, nem sabem direito o que causou a morte. E a idade...
Carlos era o único sobrinho que realmente se importava com o velho Moretti. Ao contrário de ódio, nutria um carinho especial pelo tio, mesmo que à distância. No fundo, sentia pena do velho... ali, com tanto dinheiro, mas, ao mesmo tempo, com tanta solidão. Para ele, a herança era o de menos: estudado, trabalhava numa multinacional como diretor de vendas e era tido como um dos mais competentes executivos que por ali passaram. Se dependesse da vontade de Moretti, a herança seria dele.
Poucos dias depois do enterro, houve uma reunião com o Dr. Moacir e os membros herdeiros da família. Lado-a-lado, sentaram Carlos, Aroldo e a irmã. O advogado pega um envelope e, de dentro dele, tira um papel bem amarelado pelo tempo. Lê:
"Eu, Francesco Moretti, em plena capacidade de minhas faculdades mentais, deixo meus bens igualmente divididos entre meus três sobrinhos. Subscrevo-me junto ao meu advogado e duas testemunhas".
- Ótimo! - diz Aroldo - quais os valores dos bens?
- Ao que me parece, não há mais bens! - retruca Dr. Moacir.
- Como assim não há? Meu tio era um homem rico, de posses! O que está querendo esconder de nós? - irrita-se Aroldo.
- Por favor, senhor Aroldo... sente-se. Espero que não haja nenhuma insinuação de sua parte para comigo. Melhor se acalmar. - diz o advogado.
Ainda nervoso, Aroldo se senta. Pega um copo com água e bebe lentamente. O que será que aquele velho teria pretendido? Como assim "não há mais bens"?
Dr. Moretti pega outro papel, tão amarelo como o primeiro, e lê:
"Minhas queridas víboras;
Ao ouvirem estas palavras, eu, provavelmente, já estarei enterrado. Céu ou inferno, tanto faz para onde vou. O que importa é que vocês não terão nem um décimo daquilo que eu tanto sofri para conseguir.
Aroldo, Aroldo... quanta ganância, não? Você me faz lembrar de mim mesmo... entretanto, a minha não era voltada ao que era alheio. Canalizava-a para conseguir meus bens por mérito próprio.
A tecnologia é, realmente, algo incrível. Saibam que praticamente noventa e cinco por cento de tudo o que eu tinha foi jogado fora. Está com outras pessoas agora! Nem mesmo esta casa e este mobiliário me pertenciam, quando morri. Entretanto, há uma coisa, ou melhor, há várias coisas que lhes deixo: os livros de minha biblioteca. Dentre..."
Aroldo interrompe a leitura enfurecido:
- Velho maldito! Desgraçado! Há anos, espero por esse dia... pra isso?
- Calma, Aroldo... você está descontrolado! - diz Carlos.
- Senta, por favor! - suplica a irmã.
Aroldo se levanta e tira uma arma da cintura.
- Você, seu advogadozinho maldito! Isso foi coisa sua, né! Fez o velho passar tudo o que tinha pro seu nome, e dar o golpe na gente, não é? Confessa!
- O que está dizendo? Ficou louco? - grita Dr. Moacir.
Aroldo atira na direção da cabeça do advogado, que cai ao chão como uma pedra. Os outros irmãos tentam impedir, sem sucesso, a crise de ira que assolava aquele homem. Gritava e amaldiçoava o nome do tio a todo momento. Fora de si, ele atira contra os irmãos, matando-os covardemente. Depois, vai até o carro, pega um galão de gasolina e começa a despejar o conteúdo pela casa.
- Se eu não puder ter o que esse velho tinha, ninguém mais vai ter! - gritava.
Dirige-se à biblioteca. Chegando lá, diz:
- Esta era minha herança, certo? Era!
Derrama todo o resto do que havia no galão naquele local. Pega um isqueiro, joga no chão, e dá início a um incêndio. Rapidamente, o fogo toma conta das prateleiras, do livro e do carpete. A fumaça fica intensa; em poucos minutos, nada mais se vê.
Aroldo sai daquele local, quando um forte vento sopra da janela, fazendo com que as chamas do fogo atingissem os demais móveis e cômodos da casa. Ele corre para fora e, como se estivesse em estado de graça, assiste à mórbida cena.
As chamas foram tomando todo o casarão... cômodo após cômodo, o fogo consumia tudo, chegando até o recinto onde estavam os corpos dos infelizes mortos por Aroldo; inclusive, ainda se podia ler o final do testamento que, brutalmente, havia sido interrompido pelo tiro fatal:
"Dentre tais livros, existem três relíquias, três edições do chamado "Liber Mortis", cujo valor inestimável dar-lhes-ia um certo sossego por alguns anos, caso pudessem vendê-las às pessoas certas. Poupei seu trabalho, listando abaixo os nomes de alguns colecionadores que já me fizeram ótimas propostas. Espero vê-los em breve, caros parentes...
Francesco Moretti"
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