quarta-feira, 14 de março de 2012

Liber Mortis - Como tudo começou

- O velho morreu! - disse Aroldo, entusiasmado.

- Morreu? De quê? - questionou a irmã.

- Os médicos ainda não sabem. Mas, graças a deus, ele morreu!

Há tempos que o velho Moretti vivia sozinho naquele casarão. Não por abandono dos familiares, mas por opção, já que temia ter sua fortuna roubada pelos parentes. Viúvo e sem filhos, era o estereótipo perfeito do tio rico que, supostamente, tinha o patrimônio cobiçado pelos herdeiros. Mal sabia ele que o estereótipo continuava após sua morte.

- Aroldo, temos que chamar logo o advogado, falar com o Carlos... ele deixou testamento? - pergunta a irmã.

- Não sei. Vou ligar agora para o Dr. Moacir para verificar isso.

As mãos de Aroldo tremiam, pois era como se houvesse tirado a sorte grande na loteria. Trágica coincidência, o próprio falecido tinha um ódio mortal de jogos de azar; para ele, as pessoas deveriam merecer o dinheiro, deveriam obtê-lo por seus méritos e, não, por "outros" fatores.

- Que leve seu ódio pro caixão! Que leve sua avareza pro inferno! - gritava Aroldo.

- Aroldo... o Carlos ao telefone. - diz a irmã.

Embora relutante, Aroldo atende ao telefone:

- Diga lá, Carlos. Sim, o ve... titio morreu nesta manhã. Sim, eu sei que é triste, mas não pôde ser feito nada. Os médicos disseram que o quadro era irreversível, nem sabem direito o que causou a morte. E a idade...

Carlos era o único sobrinho que realmente se importava com o velho Moretti. Ao contrário de ódio, nutria um carinho especial pelo tio, mesmo que à distância. No fundo, sentia pena do velho... ali, com tanto dinheiro, mas, ao mesmo tempo, com tanta solidão. Para ele, a herança era o de menos: estudado, trabalhava numa multinacional como diretor de vendas e era tido como um dos mais competentes executivos que por ali passaram. Se dependesse da vontade de Moretti, a herança seria dele.

Poucos dias depois do enterro, houve uma reunião com o Dr. Moacir e os membros herdeiros da família. Lado-a-lado, sentaram Carlos, Aroldo e a irmã. O advogado pega um envelope e, de dentro dele, tira um papel bem amarelado pelo tempo. Lê:

"Eu, Francesco Moretti, em plena capacidade de minhas faculdades mentais, deixo meus bens igualmente divididos entre meus três sobrinhos. Subscrevo-me junto ao meu advogado e duas testemunhas".

- Ótimo! - diz Aroldo - quais os valores dos bens?

- Ao que me parece, não há mais bens! - retruca Dr. Moacir.

- Como assim não há? Meu tio era um homem rico, de posses! O que está querendo esconder de nós? - irrita-se Aroldo.

- Por favor, senhor Aroldo... sente-se. Espero que não haja nenhuma insinuação de sua parte para comigo. Melhor se acalmar. - diz o advogado.

Ainda nervoso, Aroldo se senta. Pega um copo com água e bebe lentamente. O que será que aquele velho teria pretendido? Como assim "não há mais bens"?

Dr. Moretti pega outro papel, tão amarelo como o primeiro, e lê:

"Minhas queridas víboras;

Ao ouvirem estas palavras, eu, provavelmente, já estarei enterrado. Céu ou inferno, tanto faz para onde vou. O que importa é que vocês não terão nem um décimo daquilo que eu tanto sofri para conseguir.

Aroldo, Aroldo... quanta ganância, não? Você me faz lembrar de mim mesmo... entretanto, a minha não era voltada ao que era alheio. Canalizava-a para conseguir meus bens por mérito próprio.

A tecnologia é, realmente, algo incrível. Saibam que praticamente noventa e cinco por cento de tudo o que eu tinha foi jogado fora. Está com outras pessoas agora! Nem mesmo esta casa e este mobiliário me pertenciam, quando morri. Entretanto, há uma coisa, ou melhor, há várias coisas que lhes deixo: os livros de minha biblioteca. Dentre..."

Aroldo interrompe a leitura enfurecido:

- Velho maldito! Desgraçado! Há anos, espero por esse dia... pra isso?

- Calma, Aroldo... você está descontrolado! - diz Carlos.

- Senta, por favor! - suplica a irmã.

Aroldo se levanta e tira uma arma da cintura.

- Você, seu advogadozinho maldito! Isso foi coisa sua, né! Fez o velho passar tudo o que tinha pro seu nome, e dar o golpe na gente, não é? Confessa!

- O que está dizendo? Ficou louco? - grita Dr. Moacir.

Aroldo atira na direção da cabeça do advogado, que cai ao chão como uma pedra. Os outros irmãos tentam impedir, sem sucesso, a crise de ira que assolava aquele homem. Gritava e amaldiçoava o nome do tio a todo momento. Fora de si, ele atira contra os irmãos, matando-os covardemente. Depois, vai até o carro, pega um galão de gasolina e começa a despejar o conteúdo pela casa.

- Se eu não puder ter o que esse velho tinha, ninguém mais vai ter! - gritava.

Dirige-se à biblioteca. Chegando lá, diz:

- Esta era minha herança, certo? Era!

Derrama todo o resto do que havia no galão naquele local. Pega um isqueiro, joga no chão, e dá início a um incêndio. Rapidamente, o fogo toma conta das prateleiras, do livro e do carpete. A fumaça fica intensa; em poucos minutos, nada mais se vê.

Aroldo sai daquele local, quando um forte vento sopra da janela, fazendo com que as chamas do fogo atingissem os demais móveis e cômodos da casa. Ele corre para fora e, como se estivesse em estado de graça, assiste à mórbida cena.

As chamas foram tomando todo o casarão... cômodo após cômodo, o fogo consumia tudo, chegando até o recinto onde estavam os corpos dos infelizes mortos por Aroldo; inclusive, ainda se podia ler o final do testamento que, brutalmente, havia sido interrompido pelo tiro fatal:

"Dentre tais livros, existem três relíquias, três edições do chamado "Liber Mortis", cujo valor inestimável dar-lhes-ia um certo sossego por alguns anos, caso pudessem vendê-las às pessoas certas. Poupei seu trabalho, listando abaixo os nomes de alguns colecionadores que já me fizeram ótimas propostas. Espero vê-los em breve, caros parentes...

Francesco Moretti"

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